Justiça do PSD diz que Rui Rio é “desleal”, tem “má fé” e “falta de zelo”
É um caso flagrante de contradição entre a decisão e a fundamentação, o que no direito é caso de nulidade da decisão. É como o juiz dizer de um homicida que esfolou e matou e no fim absolvê-lo.
O Conselho de Jurisdição Nacional (CJN) do PSD aplicou ao presidente do partido Rui Rio uma suave pena de advertência por este ter desrespeitado a linha do PSD, aprovada em Congresso, de apoiar um referendo à despenalização da eutanásia (Rui Rio votou a favor desta despenalização no Parlamento, não se referendando a questão fracturante junto dos portugueses).
Toda a fundamentação da decisão do CJN arrasa, porém, Rui Rio, concluindo, de forma quase anedótica, que só a falta de “rigor” deste órgão jurisdicional o faz decidir por uma pena atenuada.
“O rigor poderia fazer o Partido perder um líder”, diz o CJN. Rui Rio ameaçou suspender funções se o órgão o punisse, uma figura original que só Mário Soares utilizou em 1980 para não apoiar o então candidato presidencial Ramalho Eanes, escolhido pelo PS. Soares bateu com a porta com o grupo do ex-Secretariado, de Guterres e Zenha, e auto-suspendeu-se de secretário-geral do partido.
É uma saída desastrada do CJN para evitar a suspensão do líder mas que deverá manter ou mesmo agravar o clima de instabilidade no partido. É difícil aceitar que o órgão máximo de justiça do PSD diga de Rui Rio — um líder que precisa de ser respeitado para receber o voto dos portugueses e chegar a primeiro-ministro — o que mafoma não diz do toucinho.
A decisão do CJN foi aprovada por cinco votos contra quatro. Fernando Negrão, que foi eleito para o CJN nas listas de Rio no último Congresso do PSD votou contra. Mas não se sabe se por defender uma pena mais pesada para Rio se por considerar juridicamente insólita a decisão do órgão jurisdicional laranja.
O Objectivo publica a parte da fundamentação da decisão do CJN, em que Rui Rio é cruxificado.
“1. Ao agir como agiu, o Presidente da CPN, Rui Rio, fê-lo de forma livre, deliberada e consciente, sabendo – porque não podia ignorar – estar a contrariar uma deliberação do Congresso e outra do CJN, conduta proibida e punida nos termos dos Estatutos e do RDPSD. 2. A conduta do Presidente do PSD, militante Rui Rio, configura infração disciplinar por violação dos deveres estatutários plasmados em: i) alínea c) do artigo 2.º dos ENPSD: “Respeito de todos pelas decisões da maioria”, porquanto não respeitou – acatando – uma decisão maioritária do Congresso; ii) alínea f) do n.º 1 do artigo 7.º dos ENPSD: “Ser leal (…) às diretrizes do Partido”, pois uma vez aprovada uma moção em Congresso, esta se torna numa diretriz do PSD; 3. A conduta do Presidente do PSD, militante Rui Rio, configura infração disciplinar também porque os atos se revestiram das seguintes formas, punidas pelo Regulamento de Disciplina: i) alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º do RDPSD: “manifesta falta de zelo no desempenho” de funções; pois o Presidente do PSD, militante Rui Rio, não cuidou de cumprir atempadamente uma relevante deliberação do órgão máximo do Partido; ii) alínea f) do n.º 1 do artigo 5.º do RDPSD: “manifesto desrespeito pelas deliberações emitidas pelos órgãos competentes do Partido”, pois o Presidente do PSD, militante Rui Rio, não cumpriu a deliberação por notória falta de vontade, não tendo sido alegado qualquer motivo válido para o incumprimento; iii) alínea m) do n.º 1 do artigo 5.º do RDPSD: “Comportamento provadamente lesivo dos objetivos prosseguidos pelo Partido”, pois o não cumprimento da moção em tempo útil impediu o Partido de prosseguir um objetivo que maioritariamente traçou no XXXVIII Congresso e que não se prevê poder prosseguir num futuro próximo. 4. A atuação do Presidente da Comissão Política Nacional, Rui Rio, foi praticada conscientemente, sem sequer ter apresentado qualquer motivo justificativo de qualquer natureza, designadamente em relação à posição assumida pelo PSD, sendo punível com uma das sanções previstas no n.º 1 do artigo 9.º, tanto dos ENPSD como do RDPSD. Ao não se ter dignado intervir nos autos de forma pessoal e direta, o Presidente da CPN, militante Rui Rio, não fundamentou por qualquer meio a prática dos factos. Foram entidades terceiras a dar contributos que não podem sequer ser considerados, sem omitir a natureza censurável da linguagem utilizada. 5. O Presidente do PSD, militante Rui Rio, não beneficia de nenhuma das causas de exclusão de culpa, inscritas no artigo 8° do RDPSD. A saber: i) a falta de intenção na prática do ato ou o reconhecimento de que não se poderia ter agido de outra forma, face às circunstâncias; ii) o reconhecimento de que se agiu de boa-fé para salvaguarda dos valores democráticos. Bem pelo contrário: i) houve a intenção de não agir em conformidade com a deliberação do Congresso e de ignorar o entendimento fixado pelo CJN; ii) não se vislumbra qualquer impedimento ao cumprimento da deliberação do Congresso e da doutrina fixada pelo CJN que não a mera falta de vontade em defender o referendo; iii) o Presidente do PSD, militante Rui Rio, não aduziu qualquer justificação para os seus atos a não ser a tese, que não colhe, das razões de consciência; iv) dificilmente se pode considerar que “salvaguarda dos valores democráticos” aquele que – obrigado por disposições internas a alargar o âmbito de decisão numa matéria que notoriamente divide a opinião pública – prefere circunscrever a decisão a um âmbito mais restrito; v) para além do mais, era possível estipular disciplina de voto (a favor) relativamente ao referendo, salvaguardando, ao mesmo tempo, a reserva de consciência para um ou mais deputados. 6. O Presidente do PSD, militante Rui Rio, tem como agravantes da responsabilidade disciplinar as circunstâncias previstas nas alíneas a), b), f) e g) do artigo 6.º do RDPSD. A saber, respetivamente : i) “premeditação”, porquanto pelo menos desde 13/02/2020 que o Presidente do PSD, militante Rui Rio, já assumia que não ia pôr o referendo “em cima da mesa”; ii) “ter a infração sido praticada em conjunto com outros”, porquanto teve o apoio de toda a CPN; iii) “a publicidade dos ilícitos cometidos”, porquanto foi notícia em variados órgãos de comunicação a questão do referendo; iv) “experiência anterior em atividades do Partido que possam aumentar a consciência da infração”, porquanto não pode alegar desconhecimento quem está ou esteve no exercício de elevados quadros políticos internos, entre os quais o de Secretário-Geral e agora o de Presidente”.
Perante este novelo de acusações, consideradas provadas pelo CJN, tudo apontaria para uma condenação pesada de Rui Rio. Mas o órgão jurisdicional decide contraditoriamente.
“7.O Presidente do PSD, militante Rui Rio, beneficia das circunstâncias atenuantes previstas nas alíneas a) e b) do artigo 7.° RDPSD. A saber, respetivamente: i) relevantes serviços prestados ao Partido, visto que foram serviços vastos e de grande importância: presidente da CPN do PSD em segundo mandato, vice-presidente por três vezes, secretário-geral, deputado à Assembleia da República em várias legislaturas, presidente por doze anos da segunda mais importante autarquia do país. ii) a falta de antecedentes disciplinares”.
Curiosamente, no final da decisão, quando aplica a sanção a Rui Rio, o CJN, arrasa de novo o líder do PSD, falando da sua “obstinação”.
“VI – Sanção Proposta 1. Nas palavras do Prof. Laborinho Lúcio, “é inegável que os partidos são importantes para a democracia, mas a democracia também é importante para os partidos”. Violar uma deliberação do órgão mais importante do Partido é um ato de muita gravidade. Fazê-lo sem outro motivo que não a obstinação de fazer levar por diante a sua ideia, é um ato ainda mais grave. Todos os dias, em todo o mundo, líderes de várias organizações executam ideias ou deliberações com as quais não concordam, mas que foram estipuladas por maiorias. No caso em apreço, o Presidente da Comissão Política Nacional, militante Rui Rio, não concordando com a posição do Congresso, nada fez para a cumprir, sendo seu dever cumpri-la. Verificam-se também a acumulação de quatro circunstâncias agravantes, atrás citadas. [capítulo V, n.º 6 do presente relatório]. 2. A isto se junta o conhecimento pleno da diferença entre verdadeiras questões de consciência e meras questões políticas e/ou procedimentais. Aos olhos de todos os militantes e do país, o Presidente da Comissão Política Nacional, militante Rui Rio, permitiu-se não cumprir uma deliberação de um órgão superior: o Congresso. Uma deliberação que era fácil de cumprir. A gravidade de uma omissão desta natureza, sem que devidamente sancionada, é permitir que, noutros patamares de atuação do PSD (distrital, concelhio e de núcleo), se violem também impunemente disposições dos seus órgãos superiores. Porque, se é grave a violação de uma deliberação do Congresso por parte da CPN, também é grave a violação de uma deliberação de uma Assembleia de Secção por parte da respetiva Comissão Política. Com o não cumprimento da moção aprovada pelo XXXVIII Congresso, violou-se o respeito devido às deliberações dos órgãos competentes, violação que não pode deixar de ser reconhecida e punida. Sobretudo, atendendo às infrações cometidas e atrás citadas [capítulo V, n.º 3 do presente relatório]. Em presença das atrás citadas agravantes e tendo em atenção as atenuantes, importa reconhecer que estas últimas ganham relevo. Desde logo, a falta de antecedentes disciplinares. Para além disso, a atenuante mais relevante – os relevantes serviços prestados ao Partido – donde se destaca a circunstância de ter sido eleito duas vezes presidente do PSD, vice-presidente por três vezes, secretário-geral, presidente por doze anos da segunda mais importante autarquia do país. Não pode deixar de ser considerado este serviço ao partido para efeitos de atenuação de uma pena que o rigor poderia fazer o Partido perder um líder. 3. Termos em que se propõe a pena de advertência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9° dos ENPSD”.