Juízas que vão julgar Sócrates assinaram carta aberta muito crítica contra o seu governo
Estávamos em janeiro de 2011, a dois meses da rejeição do PEC IV pelo Parlamento e demissão de José Sócrates, quando centenas de juízes assinaram uma contundente carta aberta aos deputados portugueses contra a Proposta de Lei do Governo Sócrates de alteração do Estatuto dos Magistrados Judiciais, envolvendo alterações profundas no regime de remunerações dos juízes.
A carta aberta dos juízes considerava a proposta governamental “aviltante”, “brutal” e “discriminatória”. Bárbara Gago da Silva André e Margarida Manuel China Henriques Alves, as duas juízas já sorteadas para julgarem José Sócrates no processo “Marquês”, foram duas das magistradas subscritoras. (falta escolher um terceiro juiz para o colectivo do processo “Marquês” ficar completo).
Nos termos do artigo 120º do Código de Processo Civil “as partes podem opor suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
A magistrada Margarida Henriques Alves, também juíza no processo Rui Pinto ficou, aliás, com este caso depois de o seu colega José Paulo Registo ter pedido escusa por ser benfiquista e ter feito comentários jocosos no Facebook contra Rui Pinto.
Na carta aberta, os juízes dizem que “nada devem ao Estado” e que têm um “trabalho honrado, em exclusividade absoluta, durante toda uma vida profissional”.
Acusam ainda o então governo minoritário liderado pelo primeiro-ministro José Sócrates de querer “funcionalizar o poder judicial”.
Alberto Martins era o ministro da Justiça da atura e foi autor desta proposta governamental, com o total apoio do primeiro-ministro.
A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), então presidida pelo juiz António Martins, foi a promotora do abaixo assinado dos juízes contra o documento e chegou a apresentar queixa contra o Governo português ao Conselho da Europa por causa da alteração remuneratória no Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Alberto Martins chegou a dizer na altura que o chumbo da proposta de lei poderia abrir uma “crise” na Justiça. A proposta acabou por ser aprovada no Parlamento em abril de 2011, já com o governo Sócrates demissionário, mas extirpada de muitas normas atacadas pelos juízes.
O Objectivo recorda o conteúdo integral da Carta Aberta dos Juízes, datada de 15.01.2011:
“Senhores Deputados, os juízes nada devem ao Estado. Desempenham a suas funções por mérito próprio, em lugares a que ascenderam por concurso e no cumprimento escrupuloso dos deveres da ética pública. A aspiração a uma remuneração condigna e adequada não é um privilégio ou um favor que tenham de pedir aos governantes, mas um direito que decorre do trabalho honrado, em exclusividade absoluta, durante toda uma vida profissional.
Excelentíssimo Senhor Presidente da Assembleia da República,
Excelentíssimos Senhores Deputados,
O Governo enviou ao Parlamento uma Proposta de Lei de alteração do Estatuto dos Juízes, com a qual pretende reduzir a sua remuneração em medida acrescida à do Orçamento de Estado e ficar com o poder de a aumentar ou diminuir, quando entender, por critérios de oportunidade ou conveniência, fora do quadro da reserva absoluta da Assembleia da República.
Essa redução é desnecessária para o objectivo de redução do défice, é injusta por ser discriminatória e é aviltante, pois equipara a remuneração de muitos juízes à das carreiras técnicas da função pública e coloca-a mesmo abaixo dos vencimentos de Oficiais de Justiça que trabalham sob a sua autoridade funcional. Com esta proposta o Governo pretende apenas funcionalizar o poder judicial, recuperando uma intenção já chumbada pelo Tribunal Constitucional em 2007.
Vossas Excelências conhecem bem os instrumentos internacionais de garantia da independência financeira dos juízes (Resoluções da ONU 40/32 e 40/146, de 29NOV e 13DEZ85, e Recomendação R(2010)12, de 17NOV2010, do Comité de Ministros do Conselho da Europa) e as razões dessa protecção, inerentes à efectivação da independência judicial e ao equilíbrio dos poderes do Estado. E sabem também que desde 2004 a remuneração-base dos juízes se depreciou 14,6%, em relação à remuneração média nacional, colocando Portugal no 34º lugar entre 43 países do Conselho da Europa e no último de toda a Europa Ocidental (Relatório CEPEJ2010).
Não se vislumbra, assim, qualquer motivo razoável para esta nova penalização da remuneração líquida dos juízes, em medida tão brutal e discriminatória, que poderá atingir quase 19%.
Senhores Deputados, os juízes nada devem ao Estado. Desempenham a suas funções por mérito próprio, em lugares a que ascenderam por concurso e no cumprimento escrupuloso dos deveres da ética pública. A aspiração a uma remuneração condigna e adequada não é um privilégio ou um favor que tenham de pedir aos governantes, mas um direito que decorre do trabalho honrado, em exclusividade absoluta, durante toda uma vida profissional.
Com a mesma legitimidade com que nunca pediram para ficar fora das medidas de contenção de despesa do Orçamento de Estado, os juízes afirmam agora que nunca aceitarão ser objecto de qualquer tratamento discriminatório. E que essa indignidade, caso se consume, terá inevitavelmente consequências nefastas ao nível da motivação profissional, do funcionamento dos tribunais e do próprio relacionamento institucional dos juízes com os demais órgãos do poder político do Estado.
Senhores Deputados, é vossa a responsabilidade de avaliar agora as intenções do Governo e de decidir em consciência o que melhor corresponde ao interesse nacional”.