A eutanásia e o evangelizador de Belém
O que está subjacente ao veto de Marcelo Rebelo de Sousa do diploma da eutanásia é que só Deus pode tirar a vida.
Em situações terminais, mais do que os cuidados paliativos, mais do que a dignidade na morte, o que está subjacente em Marcelo é a ajuda espiritual ao moribundo.
Se for religioso, ajuda-se a entrar no reino dos céus.
Se for agnóstico ou ateu, a coberto da ajuda para enfrentar os mistérios da existência o que se pretende verdadeiramente é que encontre Deus nos últimos momentos.
Marcelo Rebelo de Sousa é um homem que aparentemente é laico mas que no seu interior é teocrático e evangelizador.
No que se refere à eutanásia, é sabido que Marcelo é um defensor acérrimo dos cuidados paliativos.
E não é só em teoria mas também na prática. Marcelo Rebelo de Sousa corre muitas vezes durante a noite – ele que é um homem sem sono – a casa dos moribundos, juntamente com Isabel Galriça Neto, para lhes darem os últimos “sacramentos”, quase como dois cangalheiros.
Não foi por acaso que nos anos 1970, Marcelo não quis dar o divórcio à sua mulher Cristina Motta Veiga, mãe dos seus dois filhos, porque o casamento católico era indissolúvel.
É este homem complexo, que parece um estadista moderno mas tem as trevas escondidas que vetou a eutanásia.
Curiosamente, Marcelo é também um “doutor” da Igreja no comentário aos Evangelhos, como se expressa no seu livro “Os Evangelhos de 2001″, que escreveu logo a seguir à perda da liderança do PSD em 1999, para sublimar o efeito da derrota.
A direita está cheia de homens profundamente religiosos e beatos, sempre atenta a meter mais lanças na estrutura laica do Estado. Paulo Rangel é outro dos fiéis, também um “doutor” da Igreja, autor de outro livro sobre Jesus e os Evangelhos (Jesus Cristo e a Política). Não foi por acaso que Marcelo o apoiou na recente luta à liderança do PSD.
Cada um tem as suas convicções. Mas ter estes homens ao leme do país tem custos na modernidade.
Se dependesse de Marcelo e Rangel (e Guterres, esse homem da franja do PS católico), a eutanásia não seria permitida em nenhuma situação, nem o aborto até às dez semanas de gravidez, nem provavelmente o casamento entre os homossexuais (aqui com a agravante de uma enorme hipocrisia de Rangel)
Também não é por acaso que nos fundamentos do seu veto Marcelo questiona se seguir uma lei da eutanásia como por exemplo a holandesa faz sentido em Portugal face “ao sentimento dominante na sociedade portuguesa”. Mostrando, claramente, ao por a questão, de que lado está.
Assim se afunda e condena o país a concepções ultra-montanas que evocam a decadência portuguesa em relação ao norte da Europa quando Portugal expulsou os judeus. Um país que em momentos da sua história foi mais um Estado teocrático do que moderno, onde o rei o era por direito divino, num dos países onde o absolutismo viveu mais tarde, e um país onde o salazarismo foi uma ideologia política mas também religiosa, com o seu forte braço clerical, sob a tutela e comando de um homem que por mais profundo e florentino que fosse na política era um religioso saloio de Santa Comba.
Sobre a eutanásia, é bom lembrar a mensagem que o Premio Nobel da Física, o norte-americano, Percy Bridgman, a sofrer de um cancro em estado terminal, deixou quando se suicidou em 1961 com um tiro de caçadeira: “é indecente que a sociedade obrigue um homem a cometer este acto. Este é provavelmente o último dia em que tenho capacidade para o fazer”.
Ninguém quer comer velhinhos ao pequeno-almoço, como diziam que os comunistas faziam.
É só uma questão de os serviços de saúde do Estado ou convencionados, ajudarem a morrer modernamente, com dignidade. Sem forças que puxem Portugal para as trevas do pensamento.
Excelente artigo Paulo. É realmente uma questão de modernidade, tolerância e liberdade. Este é o problema de todas as ideologia, sejam elas de natureza religiosa ou política, de quererem impor a sua visão do mundo aos outros. E no fim do dia, não são estes hipócritas que têm que arcar com o sofrimento supremo. São os desgraçados que já nem capacidade têm para cometer o acto final que têm que viver com a injustiça destes sacerdotes sabe-se lá de quê até ao final. Este é um assunto revoltante até porque, à semelhança do aborto, dêem os estes senhores os pontapés que derem, a lei da eutanásia vai ser aprovada e quem sabe no fim ainda se poderão aproveitarão dela.