O prefácio de Orwell contra a onda pró-russa
É o prefácio que George Orwell escreveu ao seu livro “O Triunfo dos Porcos” (1945) nunca publicado durante muitas edições. Nele, o escritor britânico culpa o seu país e a Europa devido ao pensamento então dominante a favor da União Soviética e de Josep Estaline.
O Triunfo dos Porcos, como conta Orwell no prefácio, chegou a ser recusado por quatro editoras britânicas e uma delas respondeu-lhe preto no branco que as razões da rejeição eram ideológicas: os russos não podiam ser afrontados.
Hoje, os tempos mudaram 180 graus, com a Europa a tentar humilhar a Rússia e a fazer dela um pária internacional por causa da guerra na Ucrânia. O pensamento dominante é hoje contra a Rússia.
Um e outro pensamento dominantes estão enviesados. A História já acertou contas com o primeiro e mais tarde ou mais cedo deverá fazê-lo com o segundo.
O Objectivo publica extractos do Prefácio do livro, editado em Portugal pela Dom Quixote:
“Este livro foi pensado na sua ideia central, em 1937, mas só foi escrito perto do final de 1943. Na altura em que acabou por ser escrito, era já óbvio que seria difícil conseguir publicá-lo (apesar da escassez de livros da altura ser garantia de que qualquer coisa parecida com um livro ‘venderia bem’), e foi realmente recusado por quatro editoras. Somente uma delas o fez por motivos ideológicos. Duas delas publicavam livros contra a Rússia há anos e outra não tinha cor política definida. Na verdade, um editor começou por aceitar o livro, mas depois de fazer as diligências iniciais decidiu consultar o Ministério das Informações, que aparentemente o terá alertado ou, de uma forma ou outra, o terá aconselhado a não publicar. Eis um excerto de sua carta:
‘Referi a reação que tive de um importante responsável do Ministério das Informações em relação a ‘O Triunfo dos Porcos’ . Tenho de confessar que essa opinião me deu muito que pensar … Vejo agora que podia ser encarado como algo que não seria muito sensato publicar nos dias de hoje. Se a fábula fosse dirigida aos ditadores de uma forma feral e às ditaduras no seu todo, nesse caso a publicação seria adequada, mas a fábula segue de tal maneira e de forma tão completa, como agora se me afigura claro, o progresso dos Sovietes russos e seus dois ditadores, que só pode aplicar-se à Rússia , deixando de fora todas as outras ditaduras. Outra coisa: seria menos ofensivo se a casta predominante na fábula não fosse os porcos. Penso que a escolha dos porcos como casta dirigente ofenderá, por certo, muitas pessoas, e particularmente as mais susceptíveis, em que indubitavelmente se incluem os russos. ‘
(…)
“Existe a cada momento uma ortodoxia, um conjunto de ideias que se presume serem aceites de forma inquestionável por todas as pessoas sensatas. Não é propriamente proibido dizer isto ou aquilo, mas é inconveniente dizê-lo, assim como na época vitoriana era inconveniente falar de calças na presença de uma senhora. Qualquer pessoa que desafia a ortodoxia dominante dá consigo silenciada com uma eficácia surpreendente. Uma opinião genuinamente à margem da corrente quase nunca é alvo de uma avaliação justa, seja na imprensa popular, seja nas revistas mais pretensiosas.
O que a ortodoxia dominante exige neste momento é uma admiração acrítica da Rússia soviética. Toda a gente sabe disto e quase todos agem em consonância. Qualquer crítica séria ao regime soviético, qualquer revelação de fatos que o governo soviético preferiria manter escondidos, arrisca tornar-se impublicável. E esta conspiração de âmbito nacional para lisonjear o nosso aliado, tem lugar, curiosamente, num cenário de genuína tolerância intelectual. Pois, embora não nos seja permitido criticar o governo soviético, pelo menos temos uma razoável liberdade para criticar o nosso próprio governo. Dificilmente alguém publicará um ataque a Estaline, mas é bastante seguro atacar Churchill, pelo menos em livros e revistas”.
(…)
Um dos fenómenos peculiares da nossa época é o Liberal renegado. Para além da conhecida alegação marxista de que a “liberdade burguesta” é uma ilusão, existe agora uma tendência generalizada para afirmar que só é possível defender a democracia com métodos totalitários. Segundo esse argumento, se gostamos da democracia, devemos esmagar os seus inimigos seja por que meios for. E quem são os seus inimigos? Parece sempre que não são apenas os que a atacam aberta e conscientemente, mas também os que ‘objetivamente’ a põem em risco ao propagar doutrinas erradas. Por outras palavras, defender a democracia implica destruir toda a independência de pensamento. Este argumento foi usado, por exemplo, para defender as purgas russas. O mais ardente russófilo dificilmente terá acreditado que todas as vítimas fossem culpadas de todas as coisas de que foram acusadas: mas, ao defenderem opiniões heréticas, elas prejudicaram “objetivamente” o regime, pelo que foi correcto não somente massacrá-las, mas desacreditá-las com falsas acusações. O mesmo argumento foi utilizado para justificar as mentiras bem conscientes divulgadas ppela imprensa de esquerda sobre os trotskistas e outras minorias republicanas da guerra civil espanhola”. (…)
“Essas pessoas são incapazes de ver que quando se incentivam métodos totalitários, pode chegar uma altura em que serão usados contra nós em vez de a nosso favor. Se tornarmos habitual a detenção de fascistas sem julgamento, pode dar-se o caso de esse procedimento não se ficar pelos fascistas”.
in George Orwell, O Triunfo dos Porcos, Dom Quixote, Lisboa 2021
Obrigado Paulo por mais esta reflexão fortemente suportado em factos históricos – como sabes eu gosto disso. Nunca li o triunfo dos porcos e fiquei cheio de vontade de ir comprar o livro.
Já sabes a minha opinião sobre este assunto mas gostava de juntar mais alguma coisa. O clima anti-russia que se vive neste momento, de facto dominante em todo o mundo, não é uma coisa que tenha caído do céu de para-quedas. Aliás, até há cerca de um ano era exactamente o contrario, o que aliás levou à situação insustentável de confiar toda a política energética de um dos blocos mais influentes do mundo (a Europa) nas mãos de um único regime (o Russo). Como se isso não fosse já suficiente grave junta-se o facto de esse regime não ser confiável, e não é por não ser uma democracia parlamentar. Portanto Paulo, até há uma ano havia a expectativa infantil que poderíamos ser amigos de um regime corrupto e autocrático como aquele. Como se pode ver, infelizmente não havia nenhuma reserva sobre o regime russo. O que aconteceu este ano foi que esse regime partiu para a violência mais bárbara e primitiva. Assim, não sei como poderá ser defensável qualquer posição não dominante de compreensão da posição russa a não ser a posição pragmática de não os afrontar para não termos uma guerra nuclear. Essa posição pragmática, no entanto, não minimiza a questão de fundo e de principio de que aquele regime não é confiável e deve ser enfraquecido pois não é responsável para controlar tamanha força militar e tal influência económica apenas porque nasceu sentado em recursos naturais fabulosos.