Spínola, o nosso general Apocalipse now
O general António de Spínola é o nosso coronel Kilgore do filme Apocalipse Now. Não adora o napalm pela manhã, como o militar da guerra do Vietname representado pelo actor Robert Duvall, numa cena do filme que ficou para a História, mas anda perto.
Otelo Saraiva de Carvalho tem várias páginas sobre o mito de Spínola na guerra colonial na Guiné Bissau, onde comandou as forças portuguesas, destemido mas implacável com as suas vítimas. O Objectivo púbica um extracto da obra Alvorada em Abril , Lisboa, 6ª edição, 2014, editora Divina Comédia, num capítulo que se intitula “A face oculta de um herói”
“Em Novembro de 62, com a utilização de aviões militares Nord- Atlas, fizemos em vinte e quatro horas a troca com uma companhia de caçadores que se encontrava aquartelada em S. Salvador do Congo, sede do Comando do Sector F. Não demorámos aí muito tempo. Um mês depois toda a companhia se reuniu, finalmente, para passar os últimos dez meses em Quiende, antiga sanzala abandonada (como tudo, aliás, muitas dezenas de quilómetros em redor), sobre a picada Tomboco – São Salvador, eixo rodoviário de reabastecimento do Norte.
Foi um tempo difícil. Cruéis condições de clima e alojamento, zona agreste, serpentes em abundância, quatro minas anticarro, itinerários péssimos, sobretudo em época de chuvas, o que dificultava enormemente o reabastecimento de víveres.
Apercebemo-nos rapidamente de que, mais do que pelo comandante do Sector, a zona era influenciada e dominada por um tenente-coronel de Cavalaria, personalidade influente nos meios políticos e financeiros do País, mas que apesar disso, já com cin- quenta e um anos, se apresentara como voluntário para o comando de um batalhão para Angola.
O nome era-nos já familiar. Dizia-se que, aos oficiais, era difícil entrar na sua intimidade, mas que quando o conseguiam tinham dele tudo quanto queriam. Um capitão, comandante de uma das companhias do batalhão, que com ele entrara em litígio, fora enxovalhado, desprestigiado e corrido da unidade pelo ‘Velho’. Tratava os soldados com complacência, não tendo a mínima hesitacão em aplicar uma ‘charutada’ a um graduado para dar razão a um soldado. Fazia uma guerra de luxo, não lhe sendo negado absolutamente nada do que exigia, desde blindagens especiais para as viaturas (excedendo largamente o quadro orgânico) até helicópteros para apoio das operações. Participava nelas activamente, sendo sempre dos primeiros homens na frente da coluna, despindo por vezes, durante a marcha, o dólman camuflado, mas mantendo invariavelmente calçadas as luvas de pelica, o pingalim na mão e o monóculo encaixado no olho direito.
Tinha já obtido para o seu batalhão grandes êxitos operacionais. E dizia-se que pagava generosamente as informações sobre localização de grupos e ‘quartéis’ inimigos, que lhe eram, por tal motivo, fornecidas com abundância. Murmurava-se que um dia, sem dó nem piedade, dera um tiro de pistola à queima-roupa num carregador nativo que se recusara, lamuriento, a transportar um excesso de carga para uma operação, distribuindo a carga sobrante e a que o pobre já transportava pelos outros carregadores aterrorizados. E aos soldados que perante os seus incitamentos para acelerar a marcha lhe diziam: ‘O meu tenente- -coronel tem realmente muita resistência mas também não leva às costas uma mochila de quase dez quilos como nós levamos’, respondia: ‘Pois não, mas levo comigo uma mochila de mais vinte e tal anos de idade do que vocês, que ainda pesa muito mais do que a vossa’
Odiado por uns, amado por outros, com grandes qualidades e com clamorosos defeitos, sempre controverso, invejado ou admirado, António de Spínola entrava na lenda. Sentia-se realmente, no sector F, o peso da sua força e da sua influência.
Eu saíra, numa tarde quente, do acampamento em Quiende, comandando uma pequena patrulha de secção. Levávamos apenas um jipão com uma metralhadora Breda montada em tripé anti-aéreo. E tencionávamos, após breve percurso, banharmo-nos num rio de águas límpidas que conhecíamos ali perto.
Súbito lobrigámos, na fita clara da estrada, um vulto negro que levantava os braços. Facto insólito, numa área onde num círculo de dezenas e dezenas de quilómetros de raio, não se via um único ser humano. Tomei disposições: eu iria ao encontro do vulto enquanto na viatura ficavam dois homens agarrados à arma e o resto da secção procurava acompanhar-me lateralmente.
Podia ser um chamariz para emboscada.
Era uma mulher. Esbelta, idade indefinida mas a rondar quarenta anos. A seu lado estava pousado um cesto indígena frutos vários. Não falava português. E às minhas perguntas respondia em língua nativa, de uma forma hirta, sem fazer o mínimo movimento à cabeça. Percebi, de vez em quando, a palavra ‘quarte tel’. E que ela queria ir connosco na viatura.
Estranhando a postura rígida da cabeca, virei-a suavemente de costas para mim. E o que vi fez-me dar a volta ao estômago e criar um nó na garganta.
A cabeça estava segura ao tronco apenas pela coluna e pela metade da frente do pescoço. A outra metade quase desaparecera. Em seu lugar um buraco enorme, cheio de pus, onde uma mão fechada cabia à vontade.
Montámos na viatura e regressámos ao acampamento. Ao ver a ferida, o capitão vomitou. Relatei-lhe as circunstâncias do encontro E quatro nativos que connosco trabalhavam, falando com a mulher permitiram-nos ter conhecimento dos antecedentes.
Fora capturada numa operação militar. Após interrogatórios, a tropa utilizara-a como guia para nova operação na zona, mas o assalto aos ‘quartéis’ dos guerrilheiros fora frustrante. Todos se encontravam abandonados e semidestruídos. Não fora possível fazer captura de pessoal nem de material.
O homem mais velho, que parecia o chefe e que punha um vidro num olho, ficara muito zangado e mandara matá-la. Não sabia porque é que, em vez de lhe darem um tiro, lhe tinham cortado o pescoço à catanada.
Mas nós sabíamos. Podia ser que ainda se apanhasse alguém desprevenido e não convinha, por isso, disparar as armas, pelo alarme que provocaria e fuga consequente, estragando a operação.
Fora preciso matar em silêncio a guia ‘traidora’. E ali estava o resultado. A indignação entre o pessoal foi grande. O capitão elaborou uma ‘confidencial’ agressiva e foi pessoalmente, acolitado por mim, entregá-la ao comandante do Sector e expor-lhe as suas razões, levando a mulher como prova, a cabeça coberta com um lenço garrido.
Foi grande a atrapalhação do coronel. Spínola infundia-lhe temor e respeito. Não sabia o que havia de fazer. Acabou por telefonar ao batalhão, solicitando a presença do comandante. Explicou-lhe, sumariamente, o que havia. E foi um major que apareceu para saber exactamente o que se passava.
O emissário acabou por levar a mulher com ele. Soubemos depois o que aconteceu. Spínola comentara: ‘Mas quem são esses tipos que não sabem resolver um problema desses e precisam de chatear a gente?’. Chamara um furriel, mandara-o preparar a secção, montar em viatura, levar com eles a mulher e, a dez quilómetros dali, dar-lhe um tiro na cabeça e enterrá-la. Simples. Rápido. Eficiente.
Em 1964, quando regressou a Lisboa, já coronel, António de Spínola foi condecorado com a medalha de prata de Valor Militar com palma, por altos e valorosos feitos em combate no teatro de operações de Angola.”
in Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril , Lisboa, 6ª edição, 2014, editora Divina Comédia, num capítulo que se intitula “A face oculta de um herói”