Adriano Moreira: a mistificação de um legado
Adriano Moreira fez 100 anos este mês de Setembro de 2022 e o seu legado foi muito elogiado. Como o tem sido sempre nos últimos anos.
Há, no entanto, marcas no passado deste homem, enquanto ministro do Ultramar de Salazar, que nunca foram profundamente investigadas: o seu papel na operação salazarista para fazer abortar o golpe do então ministro da Defesa general Botelho Moniz entre 11 e 13 de Abril de 1961, a criação da prisão de Chão Bom, em Cabo Verde, que substituiu a do Tarrafal, e o seu papel nos eventuais acordos e procedimentos de Portugal com a Santa Sé, vigorando ainda a Concordata de 1940, para fixar residência vigiada a religiosos nacionalistas africanos que se opunham à colonização portuguesa em África.
O Campo de Trabalho de Chão Bom foi aberto pela portaria assinada por Adriano Moreira em 17 de Junho de 1961 enquanto ministro do Ultramar e serviu para prender os nacionalistas das ex-colónias. Estes também estiveram sob residência fixa e vigiada pela PIDE em vários locais de Portugal. Foi o caso do cónego Manuel das Neves, com residência fixa e vigiada no Noviciado dos Jesuítas, em Soutelo, Vila Verde, desde Agosto de 1961 até Dezembro de 1966, quando morreu em circunstâncias nunca esclarecidas.
O general Júlio Botelho Moniz, com o apoio norte-americano, tentou acabar com a guerra colonial à nascença e que Salazar fosse deposto. A guerra eclodira em 4 de Fevereiro de 1961 com o ataque de nacionalistas africanos a vários locais estratégicos em Luanda e o massacre de centenas de colonos brancos no norte de Angola em 15 de Março de 1961.
A tentativa de golpe foi desmascarada a tempo e Salazar demitiu Botelho Moniz de ministro da Defesa, bem como todos os envolvidos dos seus cargos militares. Adriano Moreira, que já era subsecretário de Estado da Administração Ultramarina desde 1959, ascendeu a ministro do Ultramar um dia após a Abrilada, a 14 de Abril de 1961. Na véspera, Salazar fizera pela rádio o seu célebre discurso: “para Angola rapidamente e em força”.
O general Kaúlza de Arriaga, então subsecretário de Estado da Aeronáutica, teve um papel crucial no fracasso do golpe. Foi ele quem avisou Salazar da intentona e foi ele o sustentáculo militar, através da Força Aérea, que funcionou na altura como esteio do regime, impedindo uma contra-reacção dos golpistas da Abrilada.
O Marechal Costa Gomes, que era na altura subsecretário de Estado do Exército, também apoiante do golpe de Botelho Moniz, referiu em 1998 numa entrevista à investigadora Manuela Cruzeiro que o mentor de Kaúlza de Arriaga foi Adriano Moreira.
Numa entrevista do Jornal Expresso a Adriano Moreira em 2008, conduzida pelos jornalistas José Pedro Castanheira e Ana Soromenho, Moreira não esconde que não apoiou a Abrilada mas o seu verdadeiro papel no falhanço do golpe continuou por esclarecer.
“Acho que não [estive no lado errado na Abrilada]. Mudar para pior e para a incerteza não é mudar (…) A meu ver, o Botelho Moniz tentou fazer uma coisa, mas, se a tivesse consumado, o dia seguinte seria tremendo”, disse Moreira ao semanário.
“Julgo que [Botelho Moniz] não tinha visão nem experiência suficientes para apresentar um plano, que de resto nunca o vi apresentar. Aconteceu um pouco a mesma coisa com a revolução de 25 de Abril. Não tinham nenhum plano de descolonização, tiveram o plano de acabar com a guerra. Mas depois?”, acrescenta.
Adriano Moreira diz na entrevista que esteve do lado dos “observadores” na Abrilada e que “o grande interventor foi o Presidente da República [Américo Tomás] e o Kaúlza de Arriaga. Esses foram os grandes interventores”.
Se a Abrilada tivesse tido êxito, a História de Portugal do final do século XX teria sido muito diferente, evitando-se a guerra colonial de 13 anos, a contraciclo da Europa, que vitimou cerca de 10 mil soldados, e certamente iniciando o processo de democratização de Portugal e a entrada na CEE.
Adriano Moreira tem beneficiado de vários factores para que o seu legado histórico não seja devidamente escrutinado.
Em primeiro lugar esteve preso no Aljube em 1949 por se ter atrevido a acusar de homicídio involuntário, enquanto advogado, o ministro do Exército Santos Costa pela morte dois anos antes por ataque cardíaco do general José Marques Godinho, envolvido numa intentona contra o regime salazarista. Mas fê-lo, como já afirmou em entrevistas, no âmbito da justiça e técnica jurídica de um caso concreto, chegando a pedir na altura aconselhamento a Marcelo Caetano sobre a matéria.
Em segundo lugar deixou de ser ministro do Ultramar logo em Dezembro de 1962 porque Salazar não quis aprofundar as reformas nas colónias, como quereria Moreira.
Em terceiro lugar rompeu com Marcelo Caetano por causa de questões universitárias.
Em quarto lugar tornou-se um académico de prestígio logo depois de sair do governo de Salazar até quase à actualidade, deixando de escrever recentemente atendendo à sua idade.
Em quinto lugar conseguiu ser aceite no regime democrático, para o que muito contribuiu a amizade com Mário Soares, que também esteve preso com ele no Aljube em 1949, por actividades contra o regime.
Em sexto lugar, a filiação à esquerda da filha Isabel Moreira, faz com que a comunicação social veja também Adriano Moreira com bonomia.