“Há mais vida para além da Pandemia” ou “Deixem-me trabalhar”
A frase completa do presidente da República é: “A vida não para, não acaba com a pandemia. Há mais vida para além da pandemia, há mais desporto, mais solidariedade, mais esperança para além da pandemia”, proferida ontem, em Lisboa, na cerimónia de apresentação de cumprimentos da missão portuguesa aos Jogos Olímpicos de Tóquio.
Claro que a frase lembra a do Presidente da República Jorge Sampaio no discurso de 25 de abril de 2003, noutros tempos sufocantes que não os do Covid, com Durão Barroso como primeiro-ministro e Ferreira Leite no Ministério das Finanças, quando a consolidação orçamental era tudo na vida portuguesa.
Disse Jorge Sampaio:
“O problema orçamental da economia portuguesa, merecendo embora exigente e necessária atenção, não é o único. Há mais vida para além do orçamento. A economia é mais do que finanças públicas. O aumento do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é fundamental para o nosso futuro e requer o esforço continuado e empenhado de todos: governantes, empresários e trabalhadores”.
Poderia substituir-se “O problema orçamental da economia portuguesa” pela crise do Covid.
Marcelo Rebelo de Sousa voltou ainda a alertar contra o “discurso alarmista fundamentalista que se não justifica”, em relação ao Covid.
A frase completa do Presidente da República é: “Não é que não haja o dever de todos, nomeadamente os mais jovens, de estarem atentos nos seus comportamentos àquilo que é o seu relacionamento em sociedade. Outra coisa é entrar-se no discurso alarmista fundamentalista que se não justifica”,
No mesmo dia, a ministra da Saúde Marta Temido, afastou o cenário de demissão, justificando que nunca podia fazê-lo “no meio de uma tempestade”, falou numa estimativa de 4000 casos Covid por dia, não afastou o cenário dos médicos não poderem tirar férias.
Alertou que algumas medidas restritivas não podem ser tomadas porque não estamos em estado de emergência, numa indirecta a Marcelo, que já garantiu não querer voltar a renová-lo. Ou seja, repetiu “o discurso alarmista fundamentalista que se não justifica”, segundo Marcelo.
O que se está a passar entre o Presidente da República e o Governo?
António Costa certamente que assina por baixo as palavras de Marcelo.
Mas, no jogo político, solta Temido com o discurso dramático Covid para proteger o executivo, papel que ela faz maravilhosamente com o seu perfil pouco reflexivo.
O governo continua a não confiar em Marcelo e tem medo dele.
Acha que quando menos se espera, Marcelo lhe pode dar uma golpada.
Ainda por cima a dois meses das eleições autárquicas.
No plano estrito do Covid, o governo desconfia que a estratégia de Marcelo em querer desconfinar é para o encostar às boxes, assente na convicção presidencial que o executivo não tem engenho e arte para … desconfinar, desde logo porque já vamos com um ano e meio de Pandemia e ainda não soube preparar a sério o Sistema Nacional de Saúde.
No plano político e ideológico, o governo acha que Marcelo Rebelo de Sousa tem uma agenda Covid de direita que visa confrontá-lo e à geringonça.
“Há mais vida para além do Covid”, ou seja há mais vida para além do teletrabalho (fora o que vai ficar porque prova que é mais produtivo), mais vida além das moratórias, do lay-off, dos apoios. Portugal vai ter de voltar a trabalhar e produzir. O que não é fácil no país, muito encostado às ajudas, desde 1978 quando começou a ser resgastado pelo FMI. É a linha divisória que ainda separa a direita da esquerda em Portugal e que um dia Cavaco Silva bem resumiu nesta frase famosa: “Deixem-me trabalhar”.
O “há mais vida para além do orçamento” de Jorge Sampaio foi, aliás, um lapso da esquerda, porque se queria livrar-se da consolidação orçamental, deu cartas à direita ao dizer que ” a economia é mais do que finanças públicas. O aumento do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é fundamental para o nosso futuro”. No fundo outra versão, mas a mesma linha, do “Deixem-me trabalhar”.
Quanto ao próprio Marcelo, há que ver se a frase “Há mais vida para além da Pandemia” está na linha do seu catavento de opiniões ou se de repente o Presidente da República quis ganhar lastro de estadista, deixar o Presidente do talk-show, da selfie, do abraço e do beijinho e ter o seu naco de história nos vindouros.