Manual de Filosofia do 10º ano dramatiza vacinação Covid entre os jovens
A polémica com a vacinação de crianças e jovens, com vários médicos e outros profissionais da saúde a desaconselharem a vacinação desta população, não impediu que o Ministério da Educação aprovasse o Livro de Filosofia do 10º ano, que refere sobre a vacinação Covid o seguinte: “as notícias falsas sobre os efeitos nocivos de vacinas contra a Covid-19 podem levar as pessoas a não querer vacinar-se e, com isso, pôr em causa a saúde pública”.
O manual, da autoria de José Ferreira Borges, Marta Paiva e Orlanda Tavares, acrescenta que “a disseminação de notícias falsas e a desinformação podem ter efeitos graves na saúde pública à escala global”, lembrando o caso do Sarampo.
“O mesmo aconteceu com o sarampo, uma doença grave que estava praticamente erradicada, mas porque surgiram notícias falsas que consideravam a vacina a causa do autismo, muitos pais não vacinaram os seus filhos. Uma vez que os sintomas de autismo surgem aproximadamente na mesma idade em que a criança é imunizada, a ideia de que aquela vacina é a causa desta doença foi divulgada acriticamente e amedrontou muitos pais que, por receio da doença, deixaram de vacinar os seus filhos, expondo-os a doenças graves que estavam controladas e pondo, por isso, em risco não apenas os seus filhos mas também os de todos os outros. Ora, estamos perante a falácia da falsa relação causal. Não é porque dois factos estão próximos no tempo – momento da vacinação e surgimento de sintomas do autismo – que podemos afirmar que um é causa de outro”, refere o livro, que se destina, em regra a jovens entre os 14 e os 16 anos.
O manual tem outras passagens que podem ser consideradas polémicas, correndo o risco de ser acusado de navegar nas ondas da ideologia de esquerda que envolve vários sectores da vida social e cultural do país desde o início da governação da Gerigonça, em 2015.
Sobre as fake news refere: “acontecimentos políticos como o Brexit e a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA levaram à discussão sobre a desinformação e o valor da verdade na cultura política das democracias ocidentais”, não alargando a mais exemplos.
Culpam-se, também, as redes sociais pelo que é apelidado de “regime de pós-verdade”: “A ascensão de movimentos e figuras populistas autoritárias, a crise de confiança nos meios de comunicação social convencionais e o crescimento de meios de comunicação alternativos levaram ao surgimento do que foi designado regime de pós- verdade”.
Este regime é depois caracterizado deste modo: “uma concepção relativista da verdade, que coloca ao mesmo nível, no âmbito da política, as verdades, as opiniões e os factos alternativos. Essa desvalorização da verdade tende a minar a esfera pública democrática, abrindo caminho para a ascensão do charlatanismo, do obscurantismo e dos extremismos”.
Por sua vez, em comentário a um extracto do livro “As Origens do Totalitarismo”, de Hannah Arendt, o manual de Filosofia do 10º ano, refere: “reconhecendo que o público é politicamente imaturo, a autora não considera que as mentiras ou as falsidades retirem valor à política. Na sua perspectiva, a política constitui um enorme desafio, digno do nosso esforço, tempo e compromisso. O grande limite da política é a verdade.
“O nosso respeito – como cidadãos – pela verdade é o que preserva, defende a autora, a integridade do domínio político. Assim, o que coloca em risco a democracia e que pode, inclusivamente, gerar um terreno fértil para o totalitarismo é a mentira deliberada”.
O pensamento de Hannah Arendt, aplicado aos nossos tempos, sugere que a saúde da vida social e política depende do respeito pela verdade e pelas informações fidedignas, o que, por sua vez, exigirá o uso ético e transparente das tecnologias”.
Quando muitos apontam que os sistemas políticos estão em crise a partir do seu interior, envolvendo os agentes políticos e as estruturas partidárias, esta visão parece muito redutora, comparando-a, por exemplo, com o que o filósofo lituano Leonidas Donskis escreve num livro bem mais recente e actual do que o de Harendt (este publicado em 1951) “Cegueira Moral, a perda da sensibilidade na modernidade líquida”, editado em 2016, conversa com outro filósofo e sociólogo, Zygmunt Bauman: “Os políticos encontram-se cada vez mais preocupados com duas áreas que servem como nova fonte de inspiração, a privacidade e a história. Nascimento, morte e sexo constituem as novas fronteiras dos campos de batalha da política. Como a política está hoje a deixar de ser uma tradução das nossas preocupações morais e existenciais em ação racional e legítima para bem da sociedade e da humanidade, e, em vez disso, se está a tornar um conjunto de práticas empresariais e manipulações habilidosas da opinião pública, não é imprudente pressupor que a rápida politização da privacidade e da história promete ser o caminho para sair do atual vácuo político e ideológico. Basta lembrar os debates mais acalorados sobre o aborto, eutanásia e casamento gay nos últimos vinte anos, mais ou menos, para concluir que o pobre indivíduo humano, independentemente de estar a caminho do mundo, ou a morrer, ou a consumar um matrimónio, continua a ser visto como propriedade do Estado e das suas instituições, ou, na melhor das hipóteses, como mero instrumento ou refém de uma doutrina política. Nada de novo sob o Sol, contudo. A modernidade sempre esteve, e continua a estar, obcecada com uma forma de controlar ao máximo o corpo e a alma humanos sem exterminar fisicamente as pessoas. O mesmo é válido em relação à memória da sociedade e ao sentimento colectivo. Como aprendemos com 1984, de George Orwell, a história depende apenas daqueles que controlam os arquivos e registos. Uma vez que os indivíduos não têm outra forma de existência a não ser a que lhes é oferecida pelo partido, a memória individual não tem o poder de criar ou restaurar a história. Mas se a memória for controlada ou fabricada e atualizada todos os dias, a história degenera num projecto de poder e controlo justificativo e legitimante. Claro que isto leva o Partido Interior a afirmar que quem controla o passado controla o futuro, e quem controla o presente controla o passado.
A história não pode ser deixada apenas nas mãos dos políticos, sejam eles democráticos ou autoritários. Não é propriedade de uma doutrina política ou de um regime, ao serviço do qual esteja. Se devidamente entendida, a história é o projeto simbólico da nossa existência mais as escolhas morais que fazemos todos os dias. Tal como a privacidade humana, o nosso direito de estudar e questionar de forma crítica a história é o alicerce da liberdade. Ao mesmo tempo, faz todo o sentido reiterar as palavras de Michel Dumoulin, professor de história da Universidade Católica de Lovaina, que comentou a disposição dos políticos para adotar os papéis e funções tanto dos historiadores quanto dos juristas: ‘Deixemos os historiadores fazerem o seu trabalho.” (in Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis, Cegueira Moral, a perda da sensibilidade na modernidade líquida, editora Relógio D’Água, Lisboa 2016.
Os jovens também têm direito a ler filósofos como Donskis e Bauman.