Maria José: o único heterónimo feminino de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa criou 46 pseudónimos e autores fictícios mas só um era mulher, Maria José, corcunda e patética, figura nada atraente, imagem que o poeta também tinha de si, como conta Richard Zenith na monumental biografia que escreveu de Fernando Pessoa, ao ponto de num deslize gramatical, encontrado pelo biógrafo, Maria José falar de si no masculino em vez de no feminino.
“Pessoa identificou-se a tal ponto com o papel que estava a interpretar que, a dado momento, a corcunda se refere a si própria no masculino e não no feminine (‘eu mesmo’ em vez de ‘eu mesma’. Esse deslize gramatical reforça as nossas suspeitas de que a pobre Maria José funciona como um substituto paródico de Fernando Pessoa, que não possuía nenhuma das características exageradamente patéticas dela, mas se considerava uma criatura pouco atraente e incapaz de inspirar amor – por mais que Ofélia o amasse”, escreve Richard Zenith na biografia do poeta, editada recentemente pela Quetzal.
“Pela mesma altura em que Álvaro de Campos alvitrava que Ricardo Reis pudesse ser do género fluído, Pessoa inventou o ultimo heterónimo e único alter feminine: Maria José, autora de uma angustiada e solitária ‘Carta da Corcunda para o serralheiro’, que só seria publicada em 1990. Para além de ser corcunda, Maria José, uma jovem de dezanove anos, sofre de uma artrite incapacitante e de tuberculose terminal. Sabe que irá morrer em breve e, incapaz de se conter, declara desesperadamente o amor que sente pelo Senhor António, o serralheiro bem-parecido que passa de manhã por baixo da janela dela a caminho do trabalho e ao regressar a casa ao final da tarde. A carta descreve a vida dela como uma inválida dependente de outras pessoas para todas as suas necessidades e que passa o dia inteiro à janela, ansiando tão-somente por ver o serralheiro passar. O desejo da rapariga é que ele erga a cabeça e cruze o olhar com o dela, mas apenas por breves instantes, pois Maria José nada tem de bonita, e sem nunca perceber o que ela sente por ele, já que o serralheiro nada mais poderia fazer senão rir-se. E é por isso, diz, que ‘escrevo esta carta só para guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si’, diz Zenith.
Maria José é única no género feminino mas acompanha os outros heterónimos de Fernando Pessoa na complexidade.