Não há inocentes na Ucrânia
Tornou-se moda atacar o PCP por causa da sua posição anti-Zelenski na guerra da Ucrânia, chegando-se a apelar à sua ilegalização. Mas a posição dos comunistas não é diferente da dos governos chinês e indiano e outros governos, que apelam à paz e criticam Zelenski por estar obcecado com uma lógica armamentista, semelhante à de Vladimir Putin, que torna a guerra imparável. China e Índia representam quase metade da Humanidade mas não se veem portugueses a pinchar as paredes das embaixadas destes países ou a exigirem, por exemplo, o confisco dos muitos bens de que o governo chinês é proprietário em Portugal, muitos deles em sectores estratégicos
São muitos os equívocos que persistem sobre a guerra na Ucrânia.
A Rússia não podia deixar de ser veementemente condenada, como foi, em levar a guerra quase aos quatro cantos da Ucrânia.
Se tivesse restringindo a sua acção ao sul da Ucrânia, parcialmente russófono, de onde pretensamente terá partido o pedido para a “operação militar especial”, através das auto-proclamadas repúblicas do Donbass, tudo podia ter sido diferente. A capacidade de manobra política russa seria muito superior, em grande medida escudada no precedente da intervenção da NATO no Kosovo em 1999, amputando este território à Sérvia.
O precedente do Kosovo, criado pelo Ocidente, não serviu a este para moderar os ímpetos a Zelenski e, após o choque inicial e a condenação veemente da Rússia, fazer o “turn over” e criar pontes com Moscovo. Em vez disso, nos EUA e na Europa, tem-se assistido à maior campanha de sempre contra um país e um povo, visando expulsá-los para sempre do concerto de nações.
Quando hoje trata Putin como o maior inimigo da Humanidade, o Ocidente esquece a folha de serviços impecável que o líder russo prestou ao Ocidente, dando-lhe apoio incondicional na luta contra o terrorismo e luz verde para as intervenções no Afeganistão e no Iraque.
Como esquece a facilidade com que Moscovo permitiu a unificação da Alemanha, o desmembramento do Pacto de Varsóvia, o alargamento da NATO a praticamente todos os países do Leste europeu, da esfera ex-soviética.
Outro equivoco da guerra da Ucrânia tem a ver com a soberba ocidental, de que o nosso sistema social, político e cultural é superior ao russo. É verdade que a democracia ocidental é hoje mais evoluída, com um poder judicial que não permite a violação de direitos humanos que existe na Rússia. Também muito mais sofisticada, permitindo manter aparências. Não há nos EUA e na Europa golpes fantoches como aquele que permite Putin no poder há 22 anos… Mas há Trump, há o fim do direito ao aborto nos EUA.
E há as falhas na democracia ocidental que não permitem cantar de galo e querer exportar o modelo. O poder político está cativo do poder financeiro, das corporações e das redes de interesse, metade das pessoas não querem votar e a parte que vota entrega o poder a uma casta profissional de políticos que se habituou a ser comandada pelos grandes poderes financeiro e corporativo, não prosseguindo efectivamente o interesse público. Como dizia há um mês o filósofo francês, Jacques Ranciére, numa entrevista ao jornal “Expresso” somos governados por uma “oligarquia de especialistas do poder.” Não é só na Rússia que existem oligarcas … Por sua vez, as tentativas para instilar um pensamento único, agora sobre a Ucrânia, antes sobre o Covid, têm muito pouco de democrático…
Outro equivoco prende-se com a crença ocidental de que se fossemos todos americanos e europeus, não existiriam guerras no mundo. A linha é que as democracias não fazem guerras. Ora, o facto é que fazem e fazem guerras injustas e ilegítimas que causaram milhares de mortos, no Vietname, na Sérvia, no Iraque, na América Latina …