Quando Cunhal e Palma Carlos quiseram vender armas ao Chile pela porta do cavalo
Adelino da Palma Carlos, primeiro-ministro do I Governo Provisório (16 de Maio de 1974 – 18 de Julho de 1974) conta na entrevista que deu a Helena Sanches Osório (editada em livro em 1988 com o título Um só rosto, uma só fé, Conversas com Adelino da Palma Carlos, editora Diversos) que Álvaro Cunhal quis vender armas ao Chile do ditador Augusto Pinochet. Palma Carlos publica mesmo a acta informal dessa reunião do Conselho de Ministros, datada de 26.06.1974, que faz parte do seu arquivo pessoal, onde se refere o comentário de Cunhal de que a venda deveria ser tratada como um “contrato comercial vulgar”. Porém, a história tem outros ingredientes e não pode ser vista fora do contexto. O ministro da Defesa Firmino Miguel foi quem levou o assunto ao Conselho de Ministro e explicou que a encomenda, no valor de 130 mil contos, era muito importante para os estabelecimentos fabris do exército, o que representava a manutenção dos postos de trabalho. Foi esta questão que terá levado Cunhal a defender a solução comercial, propondo, aliás, como diz Palma Carlos, o esquema engenhoso de “vender as munições a um terceiro, que as revendesse a quem quisesse …” (informação, porém, que não consta na acta). Se não fosse esta preocupação do então secretário-geral do PCP com a situação dos trabalhadores das fábricas de armamento do Estado, possivelmente Cunhal seria contra o negócio, já que na acta é dito que Cunhal fez também o seguinte comentário: “toda a demarcação é importante”. Curiosamente, também Palma Carlos defendeu a venda indirecta de armas ao Chile.
No livro, Palma Carlos diz a Helena Sanches Osório que “(…) Um dia apareceu Firmino Miguel a dizer, um bocado contrafeito, a dizer: Tenho aqui um problema … O Exército quer vender armas para o Chile. Acontece que, pelo facto de, no Chile, estar o Pinochet no Poder, com o seu regime ditatorial, tínhamos cortado relações diplomáticas com aquele país. A nossa lei só permitia a venda de material militar com autorização do Governo. Pronunciámo-nos logo contra tal venda, compreendendo, no entanto, que a recusa nos fazia a maior das diferenças pois era, e ainda é, uma das fontes de receita portuguesa. Muitos dos ministros barafustaram violentamente, especialmente Pereira de Moura e Salgado Zenha. Mas Álvaro Cunhal, muito calmo, como de costume, aconselhou a que se desse um tratamento estritamente comercial ao assunto, vendendo as munições a um terceiro, que as revendesse a quem quisesse …”
Entretanto, na acta de 26.06.1974 estão registadas as intervenções dos ministros sobre este assunto:
“Firmino [Miguel, ministro da Defesa] — Encomenda de 130.000 contos do Chile em munições de armas ligeiras. Muito importante para a fábrica (6 meses de trabalho).
Cunhal [ Álvaro, ministro sem Pasta] – Não quer ser mais papista que o Papa. Possível comparação da situação portuguesa e a do Chile. Vantagem em se insistir no que tem sido dito e redito. Espírito diverso das duas Forças Armadas dos dois países. Toda a demarcação é importante.
M Rocha [Manuel Rocha, ministro do Equipamento Social e do Ambiente] – Indústria subocupada?
Firmino – A curto prazo vai estar com certeza. Mas não começam a fazer já (6 meses). Estamos a pensar numa reconversão mas nesse momento é difícil pensar noutras encomendas. Está assegurado o segredo da operação.
Cunhal – Tornar isto um contrato comercial vulgar (..)
Carlos [Adelino da Palma, primeiro- ministro] – “se conseguir arranjar-se um intermediário capaz. O fornecimento directo ao Chile é muito desaconselhável neste momento.”
Refira-se que o ministro da Justiça, Salgado Zenha, o ministro sem pasta Pereira de Moura, o ministro da Coordenação Interterritorial Almeida Santos e o ministro da Comunicação Social Raul Rego se insurgiram contra a venda de armas ao Chile de Pinochet por razões políticas e morais.