Quando Guterres recusou ser presidente da Comissão Europeia
Em finais de 1998, António Guterres, então primeiro-ministro, teve garantido o lugar de presidente da Comissão Europeia, substituindo o então titular do cargo, Jacques Santer mas recusou por razões pessoais e políticas: a morte da mulher, Luísa Guterres, em Janeiro de 1998 e a falta de um líder à altura, no PS, para o substituir.
O embaixador Francisco Seixas da Costa conta como foi no seu livro de memórias Antes que me esqueça (Dom Quixote, 2023). O Objectivo publica extractos da obra:
“Ao longo de 1998, em diversas conversas a que assisti entre Guterres e alguns dos seus pares, testemunhei, sempre por iniciativa dos interlocutores do primeiro-ministro português, várias insistências para que ele considerasse aceitar candidatar-se ao cargo. Guterres nunca era conclusivo sobre o seu possível interesse. Recordo-me, em especial, de ouvir Tony Blair, em Downing Street, a ser bastante enfático nessa insistência, numa longa conversa em que referiu, nominativamente, outros possíveis apoiantes de Guterres, avaliando que o ambiente em Conselho Europeu lhe era amplamente favorável. Os meus pares dos Assuntos Europeus, com quem me ia cruzando pela Europa, davam cada vez mais o assunto por quase decidido.
Regressemos então a Viena, a outubro de 1998. A decisão que Guterres nos transmitia não era uma completa surpresa para mim e, seguramente, não o era para Pina Moura, que já devia estar avisado dessa intenção. Desde há semanas que me tinham chegado sinais de que Guterres estava cada vez mais avesso à ideia de ir para Bruxelas. Aquele era então o ponto final, concluí.
João Pimentel, que um ano antes fora o ‘pai’ da ideia, mas estava então afastado da convivência diária com Guterres, era o mais inconformado. ‘Porquê, António? Está tudo a correr tão bem! Cada vez me chegam mais sinais que o teu nome tem condições para ser aceite.’
Guterres explicou. Estava viúvo desde janeiro. A filha, que aliás estivera no jantar, era muito nova e precisava muito da atenção do pai. Até ali, ele tinha sacrificado a família no acompanhamento da sobrinha. E isso não podia continuar. Uma ida para Bruxelas ocupar-lhe-ia ainda mais a vida, de uma forma que não era compatível com a atenção que devia à filha. Tinha de pôr a família primeiro.
(…) ‘Além disso, há a questão política interna.’ Eu e Pina Moura mantínhamo-nos calados. Lima Pimentel fazia a despesa da conversa e das perguntas.
‘Com a saída do governo do Vitorino, por aquele assunto da sisa da propriedade no Alentejo, não há um sucessor natural para mim. Se eu anuncio a saída, o PS parte-se, saltam dois ou três putativos substitutos e o mais provável é que quem ganhe o partido venha depois a perder as eleições legislativas, daqui a um ano. Nessa altura, eu estaria já em Bruxelas e o partido nunca me iria perdoar. Não posso sair.’
A reserva impede-me de referir a análise que, na ocasião, fez a cada um dos nomes possíveis como hipóteses para o substituírem como líder. Foi interessante o modo como avaliou, com respeito político e pessoal mas com realismo, o perfil de cada um, para depois os excluir a todos por não terem, não obstante as suas qualidades, no partido e no eleitorado, um sucesso garantido,
Mas senti que havia ali mais qualquer coisa. Havia já um desânimo, uma falta de motivação. A morte de Luísa, cuja doença todos tínhamos acompanhado no governo, tinha ajudado a gerar um outro António Guterres.”