Quando Guterres se demitiu de primeiro-ministro
Nas eleições de 1999, o líder do PS e primeiro-ministro esteve a uma unha negra de ter maioria absoluta. Faltou-lhe um deputado. Guterres tinha chegado ao poder em 1995, em estado de graça, após o cavaquismo já moribundo. Foram anos de ouro, sobretudo o ano de 1998, com a Expo 98 e a inauguração da Ponte Vasco da Gama.
A partir do ano 2000, como se fosse o bug do milénio, tudo começou a desabar. Os orçamentos limianos, conseguindo o apoio do deputado Daniel Campelo em troca de contrapartidas directas para a região de onde era natural, deu um ar de traficância política. Armando Vara, um protegido de Guterres, caiu em desgraça por causa de negócios suspeitos na Fundação de Prevenção e Segurança. Em 4 de Março de 2001, numa noite de chuva, aconteceu o pior, a queda da Ponte de Entre os Rios, em Castelo de Paiva, vitimando 59 pessoas e levando à demissão Jorge Coelho o ministro da Administração Interna, Jorge Coelho. Os meses seguintes já foram em agonia, com uma governação insegura e errática, em vários dossiers. A hecatombe era esperada e surgiu nas eleições autárquicas de 16 de Dezembro de 2001, em que o PS teve um dos piores resultados eleitorais. Guterres não aguentou e demitiu-se para, como confessou em discurso aos portugueses, evitar um “pântano político” que, na verdade, já o era.
O embaixador Francisco Seixas da Costa conta no seu livro de memórias Antes que me esqueça (Dom Quixote, 2023), o momento em que Guterres telefonou ao então Presidente da República, Jorge Sampaio -que se encontrava no Palácio de Belém, na sala do Conselho de Estado a ver as eleições com alguns amigos, entre eles Seixas da Costa — a comunicar-lhe a sua decisão antes de falar ao país:
“Em determinado momento, Jorge Sampaio foi avisado de que tinha uma chamada do primeiro-ministro, Saiu para o seu gabinete. Não sei quanto tempo demorou a conversa. Regressou, com ar grave: ‘O Guterres quer-se demitir’. Não faço a menor ideia se esse cenário já tinha sido aventado pelo grupo, nas horas anteriores, mas lembro-me de alguma estupefação à volta da mesa.
‘Tentei dissuadi-lo, mas está muito determinado’, disse o presidente. Alguns de nós, comigo incluído, dissemos que seria importante que voltasse a tentar convencer o primeiro-ministro a permanecer, evitando uma crise e eleições. Sampaio foi ouvindo e, a certa altura, levantou-se. Foi falar de novo com Guterres. Regressou muito pouco tempo depois, informando que a decisão do primeiro-ministro era inabalável.”