Tribunal Constitucional já chumbou alterações ao OE em 1986
O então primeiro-ministro Cavaco Silva, à frente de um governo minoritário, requereu ao Tribunal Constitucional em 1986 a inconstitucionalidade de normas aprovadas pela Assembleia da República que alteraram o Orçamento de Estado desse ano. O então líder do PSD invocou a lei-travão do artigo 167º nº 2 da Constituição (que veda aos deputados apresentar iniciativas que aumentem as despesas ou diminuam as despesas previstas no Orçamento) e este órgão político-jurídico fiscalizador da lei fundamental deu-lhe razão no Acórdão nº 317/86.
Refira-se que o primeiro-ministro António Costa requereu ontem ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva de três diplomas promulgados pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que reforçam apoios sociais em virtude da Pandemia Covid-19 e aumentam a despesa em relação ao Orçamento de Estado para 2021.
Este acórdão 317/86 do Tribunal Constitucional refere:
“Aprovado o Orçamento, passa-se à fase da sua execução. O Orçamento, enquanto previsão, pode não cobrir situações imprevistas que venham a ocorrer e a que a Administração Pública tem de fazer frente. É, em tais casos, que normalmente se impõe alterar o Orçamento.
Pergunta-se: quem o poderá alterar?
A resposta que se impõe é que tal competência cabe à Assembleia da República (n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 40/83, de 13 de Dezembro), o que, aliás, é lógico, uma vez que é ela o órgão que o elabora. No entanto, não pode a Assembleia da República tomar a iniciativa de alterar o Orçamento no decurso da sua execução. Se a proposta do Governo constitui um pressuposto indispensável para a sua elaboração, seria perfeitamente ilógico que a Assembleia da República o pudesse alterar, na fase de execução, sem proposta do Governo, órgão competente para a mesma execução.
Uma proposta de alteração não significa, por princípio, uma proposta para elaboração de um novo Orçamento, mas tão-somente a da modificação daquele em aspectos normalmente pontuais ou parcelares, tendentes a facilitar a condução da política financeira do País, em harmonia com a direcção imprimida pelo próprio Governo.
Terá, nesta hipótese, a Assembleia da República os mesmos poderes que possui em face da proposta do Orçamento, que lhe permitem modificá-lo largamente, criando e extinguindo receitas e despesas?
A resposta negativa parece impor-se.
É que, no caso da proposta do Orçamento, a fase é de previsão do conjunto de todas as despesas a realizar pelo Estado, durante o ano, e dos processos de as cobrir.
Procura-se definir o plano financeiro global do Estado. Compreende-se que o órgão constitucionalmente competente para aprovar o Orçamento possa decidir livremente o que maior interesse tem para o Estado na matéria.
No caso de alteração do Orçamento, já não se está numa fase de previsão, nem se pretende traçar um plano financeiro global. Tem-se apenas a pretensão de alterar um plano já elaborado, que está a ser executado, e em áreas delimitadas pela proposta do Governo, que tem o exclusivo da iniciativa de alteração e o encargo e responsabilidade pela execução orçamental.
O Governo tem o poder de propor alterações ao Orçamento, sempre que tal se lhe afigure necessário. É certo que uma proposta de alteração do Orçamento se não reconduz a acto de execução do Orçamento, mas a própria execução deste pode determinar a necessidade de fazer a proposta de alteração.
Não é de aceitar que, face a uma simples proposta de alteração do Orçamento, a Assembleia da República possa proceder a modificações orçamentais que não se inscrevam no âmbito da proposta do Governo. Isto, desde logo, porque de outro modo ficaria descaracterizado o exclusivo governamental da iniciativa de alteração do Orçamento. O Governo ficaria condenado ou a não alterar o Orçamento ou a correr o risco de a Assembleia da República, aproveitando uma qualquer iniciativa sua de alteração, alargar as alterações a outras áreas, não pretendidas pelo Governo.
Se fosse possível aproveitar uma proposta de alteração do Orçamento para introduzir modificações orçamentais que não se inscrevessem no âmbito da proposta governamental, poderia desfigurar-se, em qualquer altura, o Orçamento aprovado, criar até um novo Orçamento. Acresce que, se tão amplos poderes estivessem sempre na disponibilidade da Assembleia da República o direito do Governo de propor alterações ao Orçamento, na verdade, ficaria esvaziado de conteúdo.
É que o Governo, ao propor uma alteração, pretende, em regra, soluções para situações imprevistas e criar condições para conduzir a política financeira do País segundo a orientação que lhe imprime, tendo como instrumento o Orçamento aprovado. Se, de antemão, souber que tudo vai ser alterado, criando-se-lhe porventura condições muito mais desfavoráveis do que as que tem, não se atreverá a fazer quaisquer propostas de alteração ao Orçamento. A menos que tenha uma segura maioria parlamentar.
Conferir sempre tão amplos poderes à Assembleia da República seria criar a possibilidade de uma modificação do Orçamento, ou, até, de um novo Orçamento. E isso a Constituição não o pode querer. De facto, uma tal possibilidade equivaleria a permitir que a Assembleia da República, depois de munir o Governo com um instrumento de trabalho que é o Orçamento, com o qual aquele aceitou governar, lhe «trocasse» esse instrumento por um outro completamente diferente e tão diferente que, com ele, o Governo não pudesse ou quisesse governar”.
Alterará o Tribunal Constitucional a sua doutrina ou manterá esta linha?
Pode ler o acórdão 317/86 na íntegra no seguinte endereço electrónico: